terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Crónica sobre um gato

«Hoje escrevo de rastos. Morreu-me o gato. Mas foi muito mais do que um gato. Há quase 20 anos, o meu relacionamento com a minha mulher tinha apenas alguns meses. Um dia, na SIC, andava por lá uma menina com uma cesta com gatinhos recém-nascidos. Esta menina tinha sido apanhada pelo nojo injusto de uma leucemia. Era muito pequena, nunca saberemos se percebia bem o que o destino malvado lhe reservava. E daí, talvez soubesse, naquela sabedoria serena das crianças e dos animais, esse instinto com o qual temos tanto a aprender. Ela devia perceber, porque andou a recolher gatinhos no seu quintal, deixados por uma qualquer gata que tinha desaparecido. Recolheu-os a todos numa cesta, e nessa visita à SIC tentava encontrar quem ficasse com eles. Como se fosse o seu último gesto: não partir sem resgatar a vida dos bichos indefesos. Uma das pessoas que a menina abordou foi a minha mulher. E foi assim, sem hesitação, que o gato veio para nossa casa. Sim, foi há quase 20 anos, o que significa que o gato viveu todo este tempo, desafiando todas as estatísticas. O que significa, acima de tudo, que esteve connosco todo o tempo da nossa vida de casal. Todo. Foi um gato a sério. Altivo, desconfiado, senhor do seu nariz. Viu aparecer lá em casa um cão, depois outro, e cedo lhes demonstrou quem mandava na matilha. Pelo caminho, foi recebendo festas dos meus amigos, e foi arranhando os filhos dos meus amigos. Aqui há uns anos, tornou-se um gato obeso, enorme, quase uma atracção de feira. Ficou diabético, passou a comer ração especial, mais não sei quantos comprimidos. Manteve sempre a postura, soberbo. Miava se cheirava peixe no forno. Os meus amigos brincavam com o seu tamanho desmesurado. Fazia parte da nossa casa. Há uns meses largos, foi emagrecendo, emagrecendo. Tornou-se quase o gatinho que trouxemos um dia da SIC, resgatado pela menina que iria partir em breve. Definhou. Foi desistindo. Na manhã do dia em que morreu, peguei nele para o mudar de sítio (já não conseguia sozinho), e cabia todo na minha mão, um saquinho de pêlo quente, no qual se sentiam todos os ossos. No dia seguinte à sua morte, dei por mim a fazer os gestos do costume, fui ainda verificar se a sua tigela tinha água. Mas a tigela já lá não estava. Devo ter de habituar-me. Por enquanto, limito-me a pensar se fiz tudo: se lhe dei as festas todas, se o tapei nas noites frias, se brinquei com ele nas tardes de verão. O veterinário garante-me que sim, que devemos pensar que ele foi um gato feliz, e que é nisso que devemos concentrar-nos agora. O veterinário foi uma pessoa especial. É uma pessoa especial. Obrigado por tudo, dr. Pedro Fachada. Não tive qualquer problema de chorar em frente a ele. Conheço poucas pessoas tão sensíveis e delicadas. Chorei em frente a ele, e choro aqui em frente de todos os que me lêem. Não quero saber se sou piegas. Não tenho medo de parecer ridículo: o meu amor pelos animais será sempre maior do que isso. Morreu-me o gato, morreu uma parte importante da minha vida com a minha mulher. Vou ter de habituar-me. Não sei se me habituo.»
Só vos digo que chorei a ler esta crónica, ainda para mais hoje que deixei o meu gatinho, para vir para a universidade. Que saudades que já tenho dele.
Crónica neste link.

18 comentários:

Daisy D. disse...

Confesso que nunca senti nada assim porque nunca tive um animal doméstico :/
R: ahaha é mesmo :P

Anónimo disse...

Grande crónica. É bastante compreensível apegar-mo-nos aos animais e se criarmos fortes laços de ligação com eles, é ainda mais compreensível chorar a perda. Os animais são do melhor que há!

Rita C. disse...

Adorei!!!

Rita C. disse...

Eu tenho o livro, adorei!

Evoli disse...

r. Ai bem vou precisar :c Estou cheia de medo que tenha de ir a exame.

Mariana disse...

Este texto está lindo e faz todo o sentido.

Andrea disse...

R. Já te estou a seguir *

Anónimo disse...

Perdi a minha gatinha há sete meses. Viveu comigo 14 anos e chorei dias a fio. Ás vezes ainda choro pois lembro-me dela e fico como ele, a pensar se lhe dei o melhor que pude, se a fiz feliz. Gosto de pensar que agora ela está em paz, em Terra já sofria muito nos seus últimos dias. Perdes um animal de estimação que nos acompanhou durante a vida é como perder um ente querido, um familiar, uma parte de nós.

Inês Pinto disse...

R: Muito obrigada e boa sorte para ti também ;)

Grande crónica. Custa muito perder um animal...

Sys Arancia disse...

Wow! Que grande crónica.
kiss na cheek

Marisa Costa disse...

Este texto é fenomenal!
Deixou-me super pensativa ^^

Daniela Silva disse...

Apesar de gostar mais de cães, achei-o lindo!

Andreea disse...

You have a nice blog! Keep up the good work.


http://kissthestarsblog.blogspot.ro/

Ann_Bochkareva disse...

You have a beautiful blog))
And I follow you!

Luna disse...

Os animais são aquela base...

Hanna disse...

Excelente crónica!

Rita disse...

Apesar de não gostar de gatos, tocou-me bastante. Que triste, gostei

Rita disse...

p.s.: comecei a seguir, beijinho :)